A Filosofia entre a Religião e a Ciência
Parte 03
Durante o período de obscuridade, desde o fim do século V até a
metade do século XI, o mundo romano ocidental sofreu algumas transformações
interessantes. O conflito entre o dever para com Deus e o dever para com o
Estado, introduzido pelo Cristianismo, adquiriu o caráter de um conflito entre
a Igreja e o rei. A jurisdição eclesiástica do Papa estendia-se sobre a Itália,
França, Espanha, Grã-Bretanha e Irlanda, Alemanha, Escandinávia e Polônia. A
princípio, fora da Itália e do sul da França foi muito leve o seu controle
sobre bispos e abades, mas, desde o tempo de Gregório VII ( fins do século XI
), tornou-se real e efetivo. Desde então o clero, em toda a Europa Ocidental,
formou uma única organização, dirigida por Roma, que procurava o poder
inteligente e incansavelmente e, em geral, vitoriosamente, até depois do ano
1300, em seus conflitos com os governantes seculares. O conflito entre a Igreja
e o Estado não foi apenas um conflito entre o clero e os leigos; foi, também,
uma renovação da luta entre o mundo mediterrâneo e os bárbaros do norte. A
unidade da Igreja era um reflexo da unidade do Império Romano; sua liturgia era
latina, e os seus homens mais proeminentes eram, em sua maior parte, italianos,
espanhóis ou franceses do sul. Sua educação, quando esta renasceu, foi
clássica; suas concepções da lei e do governo teriam sido mais compreensíveis
para Marco Aurélio do que para os monarcas contemporâneos. A Igreja
representava, ao mesmo tempo, continuidade com o passado e com o que havia de
mais civilizado no presente.
O poder secular, ao contrário, estava nas mãos de reis e barões de
origem teutônica, os quais procuravam preservar, o máximo possível, as
instituições que haviam trazido as florestas da Alemanha. O poder absoluto era
alheio a essas instituições, como também era estranho, a esses vigorosos
conquistadores, tudo aquilo que tivesse aparência de uma legalidade monótona e
sem espírito. O rei tinha de compartilhar seu poder com a aristocracia feudal,
mas todos esperavam, do mesmo modo, que lhes fosse permitido, de vez em quando,
uma explosão ocasional de suas paixões em forma de guerra, assassínio, pilhagem
ou rapto. É possível que os monarcas se arrependessem, pois eram sinceramente
piedosos e, afinal de contas, o arrependimento era em si mesmo uma forma de
paixão. A Igreja, porém, jamais conseguiu produzir neles a tranqüila
regularidade de uma boa conduta, como a que o empregador moderno exige e, às
vezes, consegue obter de seus empregados. De que lhes valia conquistar o mundo,
se não podiam beber, assassinar e amar como o espírito lhes exigia? E por que
deveriam eles, com seus exércitos de altivos, submeter-se ás ordens de homens
letrados, dedicados ao celibato e destituídos de forças armadas? Apesar da
desaprovação eclesiástica, conservaram o duelo e a decisão das disputas por
meio das armas, e os torneios e o amor cortesão floresceram. Às vezes, num
acesso de raiva, chegavam a matar mesmo eclesiásticos eminentes.
Toda a força armada estava do lado dos reis, mas, não obstante, a
Igreja saiu vitoriosa. A Igreja ganhou a batalha, em parte, porque tinha quase
todo o monopólio do ensino e, em parte, porque os reis viviam constantemente em
guerra. uns com os outros; mas ganhou-a, principalmente, porque, com muito
poucas exceções, tanto os governantes como ó povo acreditavam sinceramente que
a Igreja possuía as chaves do céu. A Igreja podia decidir se um rei devia
passar a eternidade no céu ou no inferno; a Igreja podia absolver os súditos do
dever de fidelidade e, assim, estimular a rebelião. Além disso, a Igreja
representava a ordem em lugar da anarquia e, por conseguinte, conquistou o
apoio da classe mercantil que surgia. Na Itália, principalmente, esta última
consideração foi decisiva.
A tentativa teutônica .de preservar pelo menos uma independência.
parcial da Igreja manifestou-se não apenas na política, mas, também, na arte,
no romance, no cavalheirismo e na guerra. Manifestou-se muito pouco no mundo
intelectual, pois o ensino se achava quase inteiramente nas mãos do clero. A
filosofia explícita da Idade Média não é um espelho exato da época, mas apenas
do pensamento de um grupo. Entre os eclesiásticos, porém - principalmente entre
os frades franciscanos - havia alguns que, por várias razões, estavam em
desacordo com o Papa. Na Itália, ademais, a cultura estendeu-se aos leigos
alguns séculos antes de se estender até ao norte dos Alpes. Frederico II, que
procurou fundar uma nova religião, representa o extremo da cultura antipapista;
Tomás de Aquino, que nasceu no reino de Nápoles, onde o poder de Frederico era
supremo, continua sendo até hoje o expoente clássico da filosofia papal. Dante,
cerca de cinqüenta anos mais tarde, conseguiu chegar a uma síntese, oferecendo
a única exposição equilibrada de todo o mundo ideológico medieval.
Depois de Dante, tanto por motivos políticos como intelectuais, a
síntese filosófica medieval se desmoronou. Teve ela, enquanto durou, uma
qualidade de ordem e perfeição de miniatura: qualquer coisa de que esse sistema
se ocupasse, era colocada com precisão em relação com o que constituía o seu
cosmo bastante limitado. Mas o Grande Cisma, o movimento dos Concílios e o
papado da renascença produziram a Reforma, que destruiu a unidade do
Cristianismo e a teoria escolástica de governo que girava em torno do Papa. N o
período da Renascença, o novo conhecimento, tanto da antigüidade como da
superfície da terra, fez com que os homens se cansassem de sistemas, que
passaram a ser considerados como prisões mentais. A astronomia de Copérnico
atribuiu á terra e ao homem uma posição mais humilde do que aquela que haviam
desfrutado na teoria de Ptolomeu. O prazer pelos f atos recentes tomou o lugar,
entre os homens inteligentes, do prazer de raciocinar, analisar e construir
sistemas. Embora a Renascença, na arte, conserve ainda uma determinada ordem,
prefere, quanto ao que diz respeito ao pensamento, uma ampla e fecunda
desordem. Neste sentido, Montaigne é o mais típico expoente da época.
Tanto na teoria política como em tudo o mais, exceto a arte, a
ordem sofre um colapso. A Idade Média, embora praticamente turbulenta, era
dominada, em sua ideologia, pelo amor da legalidade e por uma teoria muito
precisa do poder político. Todo poder procede, em última análise, de Deus; Ele
delegou poder ao Papa nos assuntos sagrados, e ao Imperador nos assuntos
seculares. Mas tanto o Papa como o Imperador perderam sua importância durante o
século XV. O Papa tornou-se simplesmente um dos príncipes italianos, empenhado
no jogo incrivelmente complicado e inescrupuloso do poder político italiano. As
novas monarquias nacionais na França, Espanha e Inglaterra tinham, em seus
próprios territórios, um poder no qual nem o Papa nem o Imperador podiam
interferir. O Estado nacional, devido, em grande parte, à pólvora, adquiriu uma
influência sobre o pensamento e o modo de sentir dos homens, como jamais
exercera antes - influência essa que, progressivamente, destruiu o que restava
da crença romana quanto à unidade da civilização.
Essa desordem política encontrou sua expressão no Príncipe, de
Maquiavel. Na ausência de qualquer princípio diretivo, a política se
transformou em áspera luta pelo poder. O Príncipe dá conselhos astutos quanto à
maneira de se participar com êxito desse jogo. O que já havia acontecido na
idade de ouro da Grécia, ocorreu de novo na Itália renascentista: os freios
morais tradicionais desapareceram, pois eram considerados como coisa ligada à
superstição; a libertação dos grilhões tornou os indivíduos enérgicos e
criadores, produzindo um raro florescimento do gênio mas a anarquia e a traição
resultantes, inevitavelmente, da decadência da moral, tornou os italianos
coletivamente impotentes, e caíram, como os gregos, sob o domínio de nações
menos civilizadas do que eles, mas não tão destituídas - de coesão social.
Todavia, o resultado foi menos desastroso do que no caso da
Grécia, pois as nações que tinham acabado de chegar ao poder, com exceção da
Espanha, se mostravam capazes de tão grandes realizações como o havia sido a
Itália.
Do século XVI em diante, a história do pensamento europeu é
dominada pela Reforma. r1 Reforma foi um movimento complexo, multiforme, e seu
êxito se deve a numerosas causas. De um modo geral, foi uma revolta das nações
do norte contra o renovado domínio de Roma. A religião fora a força que
subjugara o Norte, mas a religião, na Itália, decaíra: o papado permanecia como
uma instituição, extraindo grandes tributos da Alemanha e da Inglaterra, mas
estas nações, que eram ainda piedosas, não podiam sentir reverência alguma para
com os Bórgias e os Médicis, que pretendiam salvar as almas do purgatório em
troca de dinheiro, que esbanjavam no luxo e na imoralidade. Motivos nacionais
motivos econômicos e motivos, religiosos conjugaram-se para fortalecer a
revolta contra Roma. Além disso, os príncipes logo perceberam que, se a Igreja
se tornasse, em seus territórios, simplesmente nacional, eles seriam capazes de
dominá-la, tornando-se, assim, muito mais poderosos, em seus países, do que jamais
o haviam sido compartilhando o seu domínio com o Papa. Por todas essas razões,
as inovações teológicas de Lutero foram bem recebidas, tanto pelos governantes
como pelo povo, na maior parte da Europa Setentrional.
A Igreja Católica procedia de três fontes. Sua história sagrada
era judaica; sua teologia, grega, e seu governo e leis canônicas, ao menos
indiretamente, romanos. A Reforma rejeitou os elementos romanos, atenuou os
elementos gregos e fortaleceu grandemente os elementos judaicos. Cooperou, assim,
com as forças nacionalistas que estavam desfazendo a obra de coesão nacional
que tinha sido levada a cabo primeiro pelo Império Romano e, depois, pela
Igreja Romana. Na doutrina católica, a revelação divina não terminava na
sagrada escritura, mas continuava, de era em era, através da Igreja, à qual,
pois, era dever do indivíduo submeter suas opiniões pessoais. Os protestantes,
ao contrário, rejeitaram a Igreja como veículo da revelação divina; a verdade
devia ser procurada unicamente na Bíblia, que cada qual podia interpretar à sua
maneira. Se os homens diferissem em sua interpretação, não havia nenhuma
autoridade designada pela divindade que resolvesse tais divergências. Na
prática, o Estado reivindicava o direito que pertencera antes à Igreja - mas isso
era uma usurpação. Na teoria protestante, não devia haver nenhum intermediário
terreno entre a alma e Deus.
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